sábado, 30 de dezembro de 2006

Rothko virtual



E então, num dos muitos dias em que teclávamos num mar de outras pessoas, decidimos iniciar uma conversa em privado. Parecia-nos oportuno o reservado, uma sala onde pudéssemos manter uma conversa a sós, longe da multidão que enchia a conhecida sala de chats do iol. A desculpa era óptima, a maioria dos convivas daquele ciberespaço não só não acompanhavam a nossa pseudo-intelectualidade, dando mostras de uma ignorância profunda, como continuamente se intrometiam, com graçolas jocosas, tentando desviar a conversa para o último jogo ganho pelo Porto, interferindo no nosso debate sobre os tons laranja e amarelo de Mark Rothko.

Rothko e o seu quadro foram o mote para o início da nossa intimidade. Onde queríamos chegar? Na altura não pensei nisso, queria simplesmente descobrir quem era este cibernauta, cujo nick de animal manso, tinha chamado a minha atenção, não só pela vivacidade como pelo espírito ardente que demonstrava quando expunha os seus sentimentos.

Foi assim que naquela noite me surpreendeste, porque escrevias bem, porque abriste as tuas tonalidades de laranja e amarelo e com elas me tocaste, porque te colaste a mim no ambiente que íamos desenhando, porque ao convidar-te para a minha sala descreveste o meu sofá de canto e me afloraste os lábios sedentos de companhia. As cores, os sons, as paixões, com que íamos aos poucos enchendo a nossa sala privada, despertaram os meus sentidos e coexistimos.

Depois, foram noites seguidas de recriação de pormenores, pormenores escritos de forma tão clara que o meu mundo começou a oscilar entre o físico e o virtual. O físico, com cigarros apagados, olheiras e hálito de whisky consumido em pequenos copos. O ente virtual incorpóreo, inodoro, e até aí incolor, tinha ganho forma - o teu cheiro excitava os meus sentidos, as tuas mãos de dedos compridos afagavam o meu corpo e os teus olhos verdes de mar fixavam-me, conduzindo cores quentes que aqueciam as minhas noites.

Há alturas em que a mente não só se adapta ao mundo virtual, como acaba por o preferir. Esta realidade virtual, longe dos acontecimentos que tinham posto um fim trágico à minha vida amorosa, longe das pressões do meu mundo real, era agora o bálsamo onde podia projectar todas as fantasias que, pensava, não iria mais viver.

Nunca te quis conhecer, apesar de te esforçares tanto para nos encontrarmos. Era só um café – dizias, numa esplanada à beira rio, onde uma multidão de outros desconhecidos nos fariam passar despercebidos. Mas as minhas contínuas recusas começaram a trazer à nossa sala de sofá de canto tonalidades de castanho e azul e as noites foram ficando mais frias.

E uma noite não apareceste. Mudaste o teu nick e o meu sofá de canto tem-me hoje só a mim.